Conforme anunciado aqui, neste semana eu participei do EPIA-Estágio de Padronização da Instrução Aérea promovido pelo SERIPA-V em Porto Alegre-RS (Auditório da PUC-RS) – em minha opinião, a melhor iniciativa de prevenção de acidentes aeronáuticos que o CENIPA já realizou (em evento aberto, ao menos)! Não vou me alongar neste post com descrições sobre como foi o evento porque o Portal do CENIPA já conta com duas excelentes notas neste sentido – “SERIPA V : Investigadores compartilham experiências no EPIA” e “SERIPA V : aprovação leva EPIA para Santa Catarina” -, então vou me ater aos aspectos que não foram nelas abordados e às minhas opiniões.
Porque focar em padronização da instrução foi uma decisão tão acertada – Ou: juntando a fome com a vontade de comer
Se tem uma coisa que os militares fazem bem, esta é a padronização: tudo nas Forças Armadas é padronizado no limite do possível, do corte de cabelo ao armamento. Desta maneira, eu acho que seria uma péssima ideia promover um evento organizado por uma entidade militar voltado à publicidade ou às artes plásticas – mas, para a aviação, eu penso que é o oposto. Porque, mesmo para a atividade civil, a aviação ganha muito quando é bem padronizada (acho que nem é preciso gastar muita tinta argumentando sobre isso, pois é óbvio demais). E, se o foco é na instrução, o ganho é ainda maior, pois permite-se inocular o vírus da padronização desde cedo no aviador. Então, o evento já sai em vantagem porque foi feito por quem mais conhece de padronização: os militares! E isso já começa a diferenciar o EPIA das tais “antiquadas e repetitivas palestras de segurança promovidas pelo CENIPA“, pois usa o que os militares têm de melhor para oferecer. Esta é a “vontade de comer”, ou seja: a predisposição natural que os profissionais do CENIPA têm para tratar do tema da padronização; agora vamos falar da “fome”, que é a necessidade que a comunidade de instrutores aeronáuticos tem para se aprimorar neste sentido.
Embora haja manuais de curso publicados pela ANAC para quase todas as licenças/habilitações disponíveis (menos para a habilitação de CLASSE MLTE, uma das que mais requereria padronização, a propósito*), o fato é que:
- Estes manuais estão obsoletos (alguns estão até mesmo em desacordo com a regulamentação em vigor);
- Por obsoletos, são muito mais pro forma do que um verdadeiro guia para a instrução; e
- Não há fiscalização para averiguar se eles estão mesmo sendo cumpridos (mesmo porque, se fossem seguidos à risca, em alguns casos isto resultaria em descumprimento das normas da própria ANAC!).
Então, há uma demanda por padronização da instrução que não está sendo atendida pela autoridade regulatória/fiscalizatória, e este gap da ANAC é a “fome” por padronização a que me referi anteriormente. Mas alguém tem que fazer este papel, afinal de contas, pois os acidentes na instrução estão se multiplicando (sem contar a perda de qualidade da formação aeronáutica), e ainda bem que o SERIPA-V tomou a iniciativa!
Portanto, o EPIA é uma iniciativa que “une a fome com a vontade de comer” em relação à padronização da instrução – e isso, por si só, já vale a presença no evento! Mas, além do bom propósito, há de existir uma boa implementação – e isso também ocorreu no EPIA: foram palestrantes motivados, com apresentações muito bem preparadas, exercícios extremamente úteis, material audiovisual correto, e muita, muita oportunidade de discussão!
(*Obs.: Muito oportunamente, o EPIA também abordou as principais questões técnicas referentes à operação de bimotores leves).
Feita esta introdução mais genérica, agora gostaria de abordar dois pontos específicos discutidos no evento:
O problema da formalização do contrato de trabalho dos INVA/Hs
Em diversas oportunidades no decorrer do EPIA foi comentado como a falta de contratos de trabalho formais entre aeroclubes/escolas e INVA/Hs têm impacto na segurança, na qualidade e na padronização da instrução. Um INVA/H sem registro em carteira é muito mais facilmente demissível (a demissão custa muito menos, já que não incide multa, aviso prévio, etc.) do que um profissional regularmente contratado, e isso, dentre outras coisas:
- Aumenta a rotatividade dos INVA/Hs: é muito mais fácil adotar a política de demitir os instrutores após um limite de horas para colocar um recém-formado no lugar (e, assim, dizer que “os alunos formados na instituição têm oportunidade de trabalho no próprio aeroclube/escola”);
- Inibe o cumprimento da regulamentação da Lei do Aeronauta referente à jornada de trabalho – foi, inclusive, discutido um caso de um acidente em que o instrutor estava voando mais de 8h diárias; e, principalmente
- Fragiliza a posição do instrutor nos conflitos de interesses entre o aeroclube/escola e o aluno. Comento este aspecto a seguir.
Com a oferta de instrução superando a demanda, os aeroclubes/escolas estão fazendo de tudo para “satisfazer seu cliente” (isto é: o aluno), mas isso pode acabar gerando situações em que, de acordo com relatos de INVA/Hs durante o seminário, os impedem de realizar sua função da maneira correta. Em outras palavras: o que foi dito é que estão ocorrendo casos em que os instrutores são orientados a “pegar leve” com os alunos, de modo a evitar que estes desistam do curso, daí o citado conflito de interesses entre eles e o aeroclube/escola. E, como a posição do INVA/H é frágil, uma vez que ele nem possui contrato de trabalho formal com a instituição, o que ocorre é que o instrutor acaba cedendo mais facilmente à pressão. (É claro que isso não ocorre em todas as instituições, mas de acordo com o relatado, tampouco se trata de um caso isolado).
O voo solo na formação aeronáutica
A questão do voo solo na instrução (em especial para PPs) vem sendo debatido na ‘pilotosfera’ há muito tempo, mas no EPIA a discussão se expandiu e ganhou grande importância. O que está acontecendo é que poucas instituições seguem o regulamento à risca quanto à quantidade de voos solo obrigatórios (para PPA/PPH, são requeridas pelo menos 10h de voo solo, sendo 5h em navegação) – e, em muitos casos, esses voos simplesmente não acontecem. Ou seja: na prática, ou não se voa mais solo, ou voa-se muito menos do que o requerido pelo regulamento.
Pela experiência compartilhada entre os instrutores presentes, quando o aeroclube/escola possui aeronaves arrendadas em seu acervo, a chance de o voo solo ocorrer cai drasticamente. Pelo que se sabe, seria comum haver um acordo entre os proprietários e os arrendatários (aeroclubes/escolas) para não permitir que os alunos voem solo nestas aeronaves – muito embora possa haver exceções que só confirmam a regra.
Novamente, aqui temos o problema da falta de fiscalização da ANAC, e o resultado é que, na prática, boa parte dos pilotos privados está recebendo suas CHTs sem jamais ter voado solo. Além disso, há a polêmica questão do treinamento de parafusos, que desde jun/2012, com a publicação do RBAC-61, aparece como opcional (“quando possível”) nos requerimentos de instrução de PPA. Já para PCA, o treinamento é obrigatório, mas nem por isso executado na prática.
Encerrando
Esta foi a primeira edição do EPIA, e já há a confirmação (vide nota citada no início do post) de que haverá uma nova edição em Florianópolis para o segundo semestre. Isso é bom, mas seria muito melhor se o EPIA rompesse as fronteiras da Região Sul, e invadisse o Brasil. A instrução aeronáutica brasileira está precisando de eventos deste tipo, não só pelo conhecimento em si, mas também pela oportunidade de troca de ideias e experiências. Faço votos de que a iniciativa prospere e contamine os demais SERIPAs do Brasil!
Philippe
7 anos agoPresença confirmada na segunda edição! Em busca de conhecimentos e troca de ideias.
patrick
7 anos agoo problema vem desde os cursos teóricos,acredito que se os cursos teóricos fossem mais profissionais não teríamos tantos problemas na instrução prática.
Beto Arcaro
7 anos agoRaul,
Falou tudo!
Essa história da “satisfação do cliente” é que eu não engulo!
E o voo solo então…..
raulmarinho
7 anos agoNa verdade, ninguém está engulindo isso, Beto, nem o CENIPA…
Caetano
7 anos agoQue bom ler algo tão positivo.
augustogentile
7 anos agoFoi um evento memorável. Que seja um marco na padronização da nossa indefinida e desatualizada instrução aérea.